Espiritismo e Ciência

Fonte: Falhas do Espiritismo

encarnado-correndo-atras-de-desencarnadoKardec disse que se houver divergência entre um ensino espírita e a ciência, que se seguisse a ciência. Não há razão para sua atitude.

Já conheço esse dito e o considero utópico. Nem a ciência “tradicional” avança desse jeito, descartando teorias a cada novo fato contrário.

Muito pelo contrário, sempre são levantadas hipóteses ad hoc para conciliar dados discrepantes com um arcabouço teórico já bem estabelecido. Muitas vezes isso é bem sucedido ou o é por algum tempo. Quando a quantidade de anomalias se avoluma ou as hipóteses auxiliares começam a ficar fracas, impassíveis de qualquer verificação, podemos estar diante uma iminente mudança nos paradigmas científicos. Enfim, a Ciência é resistente à mudança e é bom que seja assim, do contrário ela seria um caos. Com o espiritismo, não é diferente e, mesmo quando a ciência o contradiz, é capaz de lançar uma “carta na manga”. Vide as supostas civilizações marcianas que seriam invisíveis aos nossos olhos e aos instrumentos de nossas sondas. Isto não deixa de ser uma hipótese auxiliar. Fraca.

Você se baseia na Ciência atual para questionar o Espiritismo. E se a Ciência estiver errada? Temos de esperar mais tempo para afirmações categóricas!

Se for assim, então me faça um favor: também não use a Ciência moderna para confirmar o Espiritismo. Justo, não? O conjunto de conhecimento a que chamamos de “Ciência” nunca estará pronto, permanecendo em constante (re)construção. Nosso domínio dos fatos da Natureza sempre será aproximado, mas uma aproximação, em princípio, cada vez melhor. Tomando as palavras de um divulgador da Ciência, se alguém disser que a Terra é plana, ele estará errado. Se outro disser que ela é uma esfera, também estará errado. Agora, se um terceiro vier falando que ambos estão igualmente errados, então ele terá multiplicado o erro dos dois!

Não somos como os demais cristãos, pois pesquisamos as coisas. Nós não cremos, sabemos!

Pois saiba, então, que há três coisas que o espiritismo assume a priori sem ter lhes dado a devida demonstração:

  1. A existência do espírito: e não é qualquer espírito, pois ele tem de ser imortal e individual. Supondo que o cerne do espírito (para não confundir com o perispírito) seja algum conjunto organizado de informações, de alguma forma a entropia não valeria para ele. Também não poderia ser duplicado ou partilhado como algumas doutrinas de renascimento preconizam;
  2. A Reencarnação: e não é qualquer reencarnação, pois ela não pode conflitar com as propriedades do espírito expostas acima. Não valem reencarnações entre eras cósmicas (como no origenismo) ou entre “planos” (espiritismo anglófono);
  3. Progresso contínuo: só que a partir de um estado bem “simples e ignorante”. A possibilidade de criação de novos espíritos já racionais junto com o corpo humano (traducianismo) está descartada. Também não são admitidas hipóteses de “queda original” e muito menos de metempsicose.

Até o presente momento, os pesquisadores apenas se questionam se se há vida após a morte e/ou reencarnação. Dizer como elas são e suas dinâmicas está muito além do que a pesquisa atual pode determinar. Portanto, não seria errado dizer que o espiritismo afirma demais e prova de menos.

O Espiritismo é a “fé racionada” ao passo que as demais são dogmáticas!

O problema é que você não é tão racional quanto pensa. Para começo de conversa, “fé racionada” é uma contradição em termos: os racional, como o próprio diz, está calcado na razão, na lógica; ao passo que a fé se origina das mais profundas emoções do ser humano, sendo que as duas costumam brigar entre si. Se a razão vence e expulsa a emoção pela porta, essa costuma a arrumar um jeito de entrar pela janela travestida de argumento racional. Deixando alegorias de lado, sua mente tem formas de ludibriar esse lado racional quando ele entra em choque com seus tabus. Exemplifico um com desenhos antes de explicar:

Dilbert: Dissonância Cognitiva

  1. – Se seus número estão corretos, meu plano estratégico é irracional.
  2. “Dissonância cognitiva assume o controle.”
  3. – Você é ruim com números.
    – O que foi aquele barulho?

Tomando a liberdade de corrigir o cartunista, a dissonância cognitiva já dera o ar da graça no primeiro quadrinho com a exposição de duas teses antagônicas. O que temos no segundo é a redução dessa dissonância, tendo o gerente escolhido a opção que melhor lhe afagava o ego. Repare que houve um certo uso da razão, porém ela estava a serviço da preservação de seus sentimentos.

A “racionalização” é um mecanismo que permite nosso ego se proteger dos mais duros ataques de evidências externas, que podem chegar a ameaçar a nossa estabilidade emocional: ela pode ser encontrada:

  • No político idealista que aceita práticas desonestas, contanto que o programa reformas de seu partido seja bem votado;
  • Nos pais que acham que o filho apenas “passa por uma fase difícil” quando, na verdade, está envolvido com drogas;
  • No paciente que recusa um tratamento por não crer num diagnóstico fatal;
  • Num consumidor já enforcado no cartão de crédito, mas ainda imaginando o quão feliz uma mercadoria o fará;
  • No cristão tradicional a cogitar que Deus fará com que não sinta falta dos parentes “mundanos” que serão perdidos. Ou se conformando que essa terá sido a escolha deles.

Enfim, se o “spoink” da tira acima fosse audível, a poluição sonora de nosso mundo seria alta.

E o que o Espiritismo tem a ver com esses exemplos?

Mais do que imagina:

Desculpe, mas você não é tão superior assim aos cristãos a quem chama de fanáticos.

Está me chamando de mentiroso?

De forma alguma. Estou é te chamando de humano. E o desejo de manter nossa mente o mais que possível dentro da “zona de conforto” é intrínseco a nossa espécie. A diferença entre grupo é onde eles decidiram alocar, dentro da mente, o wishful thinking.

Se me permite, eu recomendaria a leitura do livro Previsivelmente Irracional, de Dan Ariely. É bem divertido e elucidador.

E, por acaso, você acha que céticos não estariam também sujeitos isso?

De forma alguma. Qualquer grupo está sujeito a esse comportamento. A questão é o quanto ele é capaz ou não de se manter na “zona de conforto” impunemente. A melhor maneira de se evitar isso é dar a determinado grupo um adversário, um Nêmesis ou um rival à altura. Por exemplo, a Igreja Católica só melhorou os padrões de seu clero após a Reforma Protestante, quando teve que ativamente disputar por “corações e mentes”. De forma similar, cientistas melhoram a qualidade de suas pesquisas quando defrontados com tentativas de refutação de partidários de teses alternativas. Não seria errado classificar o ambiente científico como um lugar socialmente hostil. E mesmo religiosos às vezes denunciam fanatismos dentro do meio acadêmico (como os excessos do militante ateu Richard Dawkins), ou os forçam a defender melhor seus pontos ante o grande público, como no embate evolução x criação.

Mas debatemos muito com adversários e entre nós mesmos!

Como eu falei é preciso um adversário … à altura. Mal comparando, se fóruns de debates on-line fossem academias de musculação, eu diria que a maioria dos participantes malha com pesos de isopor. Que mérito haveria em fustigar alguém que está amarrado pela “inerrância bíblica”, é monoglota, só consegue argumentar com versículos ou wikipedia? Mas mesmo em meio ao cascalho surgem pepitas e aí se percebe que sua sapiência não vai além da ignorância de suas fontes. Quanto a debater entre si, você pode acabar “jogando pra torcida” ou “pregando para o coral”. Aliás, com o advento das redes sociais, percebo uma crescente feudalização dos grupos religiosos (e políticos). Cada um em seu nicho, deixando os estranhos de fora.

Se não somos tão racionais assim como construímos civilizações?

Parece paradoxal, mas muitas vezes agimos de forma irracional justamente por querer encontrar uma relação de causa e efeito no mundo circundante: confundimos correlação com causa ou, pior, associamos evento subsequentes que sequer tem uma relação, fazemos generalizações apressadas baseadas em poucas experiências (i.e., preconceitos), culpamos vítimas pelo próprio infortúnio, e criamos mitologias úteis para identidade do grupo, porém dificílimas de serem desfeitas depois. Em outras ocasiões sofremos efeitos colaterais de atalhos que nos garantiram a sobrevivência quando todos éramos caçadores-coletores, mas que hoje nos atrapalham: o respeito à autoridade, que garantia a união do grupo, é um porto seguro para charlatães de todos os tipos e a busca por consenso e coesão de grupos impede que divergências apontem erros que ninguém mais vê.

Reencarnação

Seus esforços são inúteis porque a reencarnação já foi comprovada pelo Dr. Ian Stevenson em mais de 2.500 casos por ele estudados.

Já deixei clara minha opinião clara sobre Stevenson no artigo deste link. Em resumo: há casos sugestivos de que aquilo que chamamos “consciência” tenha sobrevivido à morte física e sido transportado para outro corpo por algum meio ainda desconhecido. Ponto. O resto é o desejo espiritualista de enxergar mais do que os fatos podem fornecer. Primeiramente, nem todos os casos pesquisados pelo Dr. Stevenson têm a mesma força, tendo ele apenas comentado publicamente os mais fortes e intrigantes. Segundo, nada garante que isso seja um fenômeno universal, talvez “consciências” possam ser geradas do zero, acompanhando o desenvolvimento embrionário, ou muitas se percam após a morte. Terceiro, há explicações alternativas à hipótese de sobrevivência, como a psi. Quarto, embora os casos mais fortes possam ser estimulantes para os crentes na reencarnação, alguns podem ser uma ducha de água fria no modelo espírita da coisa como, por exemplo, sugerindo a inexistência aparente de um mecanismo de “ação e reação” ou de castigos terríveis a suicidas. Enfim, os adeptos da “vida única”, sejam eles religiosos cristãos ou materialistas, ainda estão longe de sofrer um xeque-mate. Podem até ter dificuldade para negar os casos que Stevenson analisou, mas não têm nenhum motivo imperioso para acatar as teses espíritas ainda. Além disso, nada do acima dito foi invenção minha, pois, se você acessou o link logo acima, vai constatar que são observações extraídas de obras dele e, justamente porque reconheceu limitações no alcance de seu próprio estudo, considero que Stevenson passa no critério de Salomão.

Termino ressaltando que este portal não se interessa pela reencarnação como fato, mas no seu aspecto histórico dentro do cristianismo. Quero dizer, rejeito a tese espírita de que o cristianismo primitivo era um protoespiritualismo, tendo a crença em múltiplas existências terrenas como um dos alicerces.

Por que só o aspecto histórico da reencarnação no cristianismo interessa mais aqui?

A reencarnação como fato natural ainda produz inflamadas discussões que não me cativam. Já a reencarnação como fato histórico do cristianismo primitivo, não. Isso é um boato persistente na melhor hipótese ou pura e simples fraude na pior.

Desculpe, mas não estou a exagerar: para defender essa impostura, vi o meio espiritualista produzir teorias conspiratóriasatribuir a antigos autores cristãos coisas que eles nunca escreveram, pinçar textos para que aparentem dizer o que se deseja e inventar regras gramaticais desconhecidas pelos falantes originais de idiomas antigos. Se você é um espírita/espiritualista e não esta preocupado com isso ou minimiza a questão, então não sei o que te abalaria.

Mas Kardec disse que:

“A reencarnação fazia parte dos dogmas judeus, sob o nome de ressurreição. (…) As ideias dos judeus sobre essa questão, como sobre muitas outras, não estavam claramente definidas. Porque só tinham noções vagas e incompletas sobre a alma e sua ligação com o corpo. Eles acreditavam que um homem podia reviver, sem terem uma ideia precisa da maneira por que isso se daria, e designavam pela palavra ressurreição o que o Espiritismo chama, mais justamente, de reencarnação.”

Sim, ele disse isso em ESE, cap. IV, parágrafo 4 e, agora, vos pergunto: isso está certo? Se você se restringir aos evangelhos, a ideia de reencarnação conflita com a de “fim dos tempos” presente nos sinópticos e solenemente desconsiderada no ESE. Se alguém reencarnou antes, não teria muito tempo para novos reencarnes. Kardec também desconsiderou como Paulo (um ex-fariseu) tratava o assunto e muito menos procurou obras da literatura intertestamentária, em que a crença na ressurreição fosse melhor descrita.

Quanto ao espiritismo esclarecer um ensino antigo, isso é uma espécie de “egocentrismo intelectual”, pois tal alegação só vale dentro do movimento. Quem está de fora constata muito bem que as semelhanças entre reencarnação (no modelo espírita) e ressurreição foram ressaltadas e as diferenças esquecidas.

Não existe ressurreição porque a “Ciência demonstra ser materialmente impossível, sobretudo quando os elementos desse corpo já estão há muito dispersos e consumidos” (Idem)

Os antigos Astecas realizavam sacrifícios humanos ao Sol para garantir que ele nascesse no dia seguinte. Óbvio que essa crença era absurda, pois a Ciência já comprovou que o astro-rei não está nem aí quanto ao que se faz sobre este planeta. Contudo, nenhum historiador se atreve a dizer que tais sacrifícios não eram feitos só porque o Sol é um gigantesco aglomerado de hidrogênio e hélio em estado plasma. Entendeu a diferença? Por mais que você ache a ressurreição absurda, sua presença pode ser identificada entre os antigos judeus e cristãos. Se não concorda com ela, tudo bem. Apenas reconheça que está adotando outra crença que julga mais plausível em substituição a ela. Ademais, o que vários escritores cristãos primitivos afirmavam é alguma continuidade entre o corpo anterior e o próximo, não uma restauração exata do original. Está se fazendo uma caricatura dos antigos conceitos de ressurreição para ridicularizá-los.

Judeus acreditam na reencarnação, logo ela também deve estar na Bíblia.

“Cristãos acreditam em santos, logo isso também deve estar na Bíblia”. Tanto a pretensa refutação espírita quanto a paródia que fiz têm em comum dois erros do mesmo quilate: primeiro, o mais correto seria dizer que parte de cada grupo acredita numa crença e na outra e mesmo as facções que as professam nem sempre o fizeram. Pode-se rastrear a origem da adoração aos santos entre os católicos até a veneração dos relicários dos mártires, assim como identificar a entrada da reencarnação no judaísmo se processando na Idade Média, mas nenhuma das duas é rastreável até o século I da Era Comum. Repare bem, não estou dizendo que um católico não deve fazer uma prece a seu santo preferido ou que é ilícito para um judeu acreditar na gigul. O que estou assinalando é que ambas as crenças foram inovações.

Não é incomum em discussões um debatedor espírita/espiritualista sacar a opinião de um judeu adepto da reencarnação. A questão é que um judeu moderno é muito útil para explanar sobre o judaísmo de hoje. E no período intertestamentário, o que significava ser judeu? A falácia dos espíritas/espiritualistas é supor implicitamente que a religião judaica não evoluiu nada de lá para cá. Se quer provar a existência da reencarnação naquela época, precisará de documentos de então.

O episódio do “Cego de Nascença” (Jo 9) é um registro da crença na reencarnação naquela época.

Essa é a única passagem bíblica, a meu ver, que aparenta sugerir explicitamente reencarnação. Entretanto, há crenças judaicas antigas que dão explicações alternativas, como a possibilidade de pecados pré-natais (estranho, mas documentado) ou a preexistência da alma antes da concepção.

Pois digo e repito: a preexistência da alma implica em reencarnação.

Pode continuar repetindo “o céu é vermelho” como um mantra que a cor dele não irá mudar. O que a preexistência implica é uma encarnação. Para uma crença na reencarnação seria preciso advogar a possibilidade de sucessivas encarnações. Em outras palavras, a preexistência é uma condição necessária, mas não suficiente. É perfeitamente possível a combinação de uma encarnação seguida por danação ou redenção eternas. Dou dois exemplos: II Baruque e Agostinho de Hipona

O historiador judeu Flávio Josefo relatou a crença da reencarnação na seita dos fariseus.

[Suspiro profundo] Essa história de novo… tudo gira, basicamente, em torno desta passagem:

Eles [os fariseus] também acreditavam que as almas tinham uma força imortal dentro delas e que sob a terra elas serão premiadas ou punidas, segundo elas tivessem vivido virtuosamente ou em vício esta vida; e estas últimas são mantidas numa prisão eterna, ao passo que as primeiras terão o poder de revivificar-se e viver novamente (*);

(*)αναβιουν, do verbo grego: αναβιοω: “reviver”.

Antiguidades Judaicas, livro XVIII, cap I

Alguém poderia encarecidamente me explicar por que os que “levaram uma vida de vícios” não reencarnarão se, pela lógica espírita, seriam os que mais necessitariam? Tenho todo um artigo dissecando as descrições de Josefo das crenças sobre a “volta à vida” entre os fariseus e o máximo que recebo de volta são outros artigos fazendo desleituras dessa passagem e de outras. Análises linguística e textual que valham, nada. Fiquemos, por ora, só com a pergunta acima, ok?

A reencarnação aparece de forma velada na Bíblia porque era uma doutrina secreta, só acessível a iniciados. Que o diga a conversa de Jesus com Nicodemos (Jo 3)

Era uma vez um grande evento mundial, cujos patrocinadores tiveram uma ideia de gênio: retardar ao máximo a venda dos ingressos para evitar a falsificação. O problema é que eles esqueceram de combinar com os falsários e, como o grande público não sabia como era o ingresso, bastou-lhes inventar um, ou melhor, vários. Moral da história: caso se ignore os detalhes de alguma coisa, então ela pode ser o que você quiser! Portanto, alegar que a reencarnação era uma “doutrina secreta” sem nenhum respaldo documental dela é um verdadeiro estelionato intelectual. Se quer um testemunho da época quanto à opinião contrária, deixo o relato de Orígenes sobre a ausência da reencarnação entre os judeus contemporâneos seus:

E aqui nosso fiel apelará para a história e dirá a seus antagonistas para perguntarem aos mestres na doutrinas secretas dos hebreus se eles na verdade sustentam tal crença [da transcorporação]. Como parece que eles não sustentam, então o argumento baseado nesta suposição se mostra muito desprovido de fundamento.

Orígenes, Comentário sobre o Evangelho de João, 6.7

A Propósito, a “conversa com Nicodemos” tem um conteúdo tão alegórico que o “nascer de novo” pode ser muito bem interpretado de outras formas e a historinha de abertura acima é meramente ilustrativa.

Muitos cabalistas dizem que suas tradições remontam ao século I.

Assim como garantem que Moisés escreveu o Pentateuco.

Os antigos gnósticos criam na reencarnação.

Nisso eu concordo, pois é algo bem documentado, quer pelos escritos deles que chegaram até nós, quer pelos de seus adversários da patrística. Há dois problemas, contudo:

  1. Os gnósticos dificilmente podem ser considerados como o “cristianismo original”, pois há uma regra simples de pesquisa: quanto mais místico, menos histórico é o Jesus apresentado, pelo fato de teologias sofisticadas demorarem mais a se formar que as simples. Não é à toa que a Alta Cristologia (Jesus como ser divino) se encontra no tardio João e não nos sinópticos, de datação mais antiga. Não há relatos sobre atividades de gnósticos antes do século II. É possível que os dissidentes mencionados na I Epístola de João tenham se juntado a algum grupo filosófico em voga na época (neopitagóricos, platônicos, etc.) e dado origem aos primeiros gnósticos do cristianismo;
  2. Os gnósticos não viam a reencarnação como algo bom. Este mundo material seria criação de um demiurgo inferior para aprisionar centelhas divinas decaídas após uma catástrofe cósmica. O objetivo deles era escapar o quanto antes do ciclo de reencarnações por meio de um conhecimento especial (gnose), transmitido por enviados celestes (Jesus, no caso dos cristãos, Sete ou Mani).

E aí, compra esse pacote todo?

A validade do Espiritismo independe de a reencarnação estar na Bíblia ou não.

Se você está falando do aspecto científico e filosófico do espiritismo, concordo. Agora, com relação ao aspecto religioso… depende. Você pode tomar duas posturas (pelo menos):

  1. Achar que a Primeira e a Segunda Revelações tiveram sua importância, mas estariam superadas pela Terceira que viria a esclarecer e complementá-las;
  2. Achar que suas predecessoras – em especial a Segunda – encontram-se tão deturpadas que seriam, na verdade, religiões falsas e a Terceira Revelação a verdadeira expressão da proposta original de Deus (ou de Jesus).

A primeira posição foi a que Paulo teve em relação ao judaísmo e a de Kardec em relação ao cristianismo. Bem ou mal, ambos tinham noção que estavam adicionando elementos novos à uma herança antiga. A segunda posição era a do anônimo autor da Epístola de Barnabé com relação ao judaísmo e vem sendo construída e disseminada no meio espírita, em relação ao cristianismo, desde os tempos de Léon Denis. Para essa última é crucial que se extraia a fórceps a reencarnação da Bíblia.

O único problema dessa postura é que ela não tem base. Do contrário, não teriam os partidários dessas teses de inventar textos inexistentes em antigos autores cristãos, citar passagens antirreencarnacionistas como se fossem pró e, por fim, apresentarem uma fantasiosa história do cristianismo até o século V de nossa Era. Se você age como Paulo, não tenho nada a lhe questionar. Agora, se você é um Barnabé, este portal está à disposição de qualquer cristão tradicional para desmantelar suas imposturas. E como tem Barbané nos portais de apologia espírita!

A reencarnação não era compreendida no primeiro século da idade cristã. A vinda do Consolador Prometido também era necessária após um amadurecimento da humanidade, a fim de que pudéssemos entender certas verdades, não reveladas nos dias de Jesus.

E quem disse que o Espírito da Verdade é o Consolador Prometido? Antes do século XIX, vários outros credos antes já alegaram ter sido criados por ele, e não me admiraria se outros vierem depois. Faça-me um favor: não venha com argumentos válidos apenas dentro de um centro espírita. Certo? Ao menos lá você pode “pregar para o coral” à vontade.

Você também deve ter seu próprio coral, afinal quem é você para falar que não existe reencarnação na Bíblia?

Devolvo a pergunta: quem é você para dizer que não existe metempsicose na Bíblia?

Como assim?

Não sabia? O mestre gnóstico Basílides interpretou a seguinte passagem de Paulo

E eu, nalgum tempo, vivia sem lei, mas, vindo o mandamento, reviveu o pecado, e eu morri

Rm 7:9

como: “antes de vir a este corpo vivi num tipo de corpo que não estava sujeito à lei: o corpo de um animal doméstico ou de um pássaro“. Bem, assim declarou Orígenes ao preservar um fragmento dele em seu Comentário sobre Romanos, Livro V, cap. I, quando o cita a fim de refutá-lo.

Dado que os gnósticos supostamente tiveram acesso a um “conhecimento secreto”, prove que Basílides estava errado em sua interpretação!

Jamais disse eu que qualquer interpretação seria válida …

Sim, só as que estão de acordo com paradigma espírita valeriam, não? Vamos dar um exemplo mais recente: os raelianos. Eles acreditam que Deus, ou melhor, os deuses da Bíblia são, na verdade, extraterrestres, os profetas seriam seres especiais sintetizados por eles para guiar a humanidade, que a estrela de Belém era uma espaçonave. Eles não acreditam em vida após a morte e muito menos em reencarnação, mas numa imortalidade carnal: Yahweh, por meio de um supercomputador, armazenaria as memórias e o código genético de todos os humanos a fim de recriá-los tal como eram, por ocasião do juízo final. A ressurreição de Jesus teria sido um experiência de clonagem!

Não sou obrigado a levar a sério essas sandices.

Concordo, apenas diga-lhes isso, pois eles se levam muito a sério. Agora, te digo uma coisa: você não vai conseguir refutá-los, nem eu, nem ninguém. Por um simples motivo: suas interpretações da Bíblia são perfeitamente coerentes com o universo que eles criaram. De fato, como alguém já disse, “qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível de magia“. Se vivêssemos na galáxia de Star Wars, diriam que Jesus era um antigo Mestre Jedi com a missão de trazer equilíbrio à Força. Talvez em algum futuro filme baseado no universo dos quadrinhos da Marvel, descubram que ele foi um incrível e versátil mutante cheio de poderes.

Cavaleiros Jedi e mutantes superpoderosos são obras de ficção, espíritos são reais.

Extraterrestres superavançados, também. Ou melhor, devem ser bem prováveis nesse universo imenso. Se eles já passaram por aqui é outra questão… Da mesma forma, pode haver indícios de que nossa mente seja independente do cérebro. Se essas “mentes livres” estavam mexendo os pauzinhos num planeta insignificante chamado Terra há dois mil anos, é outra questão…

Por ora, fique tranquilo. Não posso refutá-lo e talvez nunca possa, porque interpreta a Bíblia de forma coerente com o espiritismo, fazendo de Jesus um super médium e colocando a reencarnação entre seus ensinos.

Só não vejo motivos para achar que suas ideias fossem correntes na Palestina do primeiro século da Era Comum.

Pois eu sou um pesquisador e por isso posso dizer que existe reencarnação na Bíblia!

Deixe-me ver se entendi. Você…

  1. Se nega a analisar todas as minhas fontes porque é monoglota (nem inglês sabe);
  2. Trata a Bíblia como se fosse uma gravação audiovisual moderna, algo como “Jesus disse isso no versículo tal. Tô com ele e não abro“, sem ao menos demonstrar alguma plausibilidade para o Jesus Histórico ter realmente se pronunciado assim, além de sua conveniência pessoal;
  3. Acha que judeus e cristãos modernos podem ser utilizados como pedra de toque para avaliar seus equivalentes do primeiro século;
  4. Tem uma vasta bibliografia que se compõe majoritariamente de escritores religiosos, curiosamente de orientação espiritualista;
  5. Tergiversa em vez de responder objetivamente aos questionamentos que lhe são feitos, muitas vezes com juízos de valor e posturas emotivas;
  6. Concebe um Jesus Histórico extremamente parecido contigo;
  7. E por último, mas não menos importante, não fez a fronteira de conhecimento humano sobre o assunto avançar um centímetro sequer.

Desculpe, mas você não é um pesquisador: é um missionário. E, por favor, vá pregar para o coral de seu centro espírita, porque é dele que tem de implorar por aplausos.

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